Não sou ciclista, mal lembro da última vez que subi em uma bicicleta.
Aconteceu em Porto Alegre, a cidade onde nasci, que amo e elegi como minha. No bairro Cidade Baixa, onde tantas vezes exerci um alter-ego que tanto me agrada. Um homem (pode-se chamá-lo de homem?), descontrola-se ao se ver diante de uma massa de ciclista e decide ceivá-los para abrir passagem a seu direito de ir e vir.
Legítima defesa, alega advogado.
EPTC deveria ter sido comunicada sobre manifestação, alega autoridade.
Monstro, alega ciclista testemunha.
Tem algo dentro de mim que não consegue entender. E não me deixa em paz. Onde estamos? Que mundo estamos levando adiante onde não existe espaço para paciência, tolerância, respeito?
Eu sou motorista, cometi algumas infrações nesses quase vinte anos ao volante, mas antes disso sou gente. Não sou ciclista, repito, mal sei se ainda lembro como usar os pedais, mas antes disso sou gente. Sou pedestre, caminho e cruzo ruas, avenidas, alamedas, mas antes disso sou gente.
O que me deixa sem sono não é apenas a vulgaridade do ato de um motorista desequilibrado. É o homem por trás desse volante. Gente.
Um homem que diz ter temido pela integridade de seu filho, sentiu-se ameaçado por outros homens que se acreditavam no direito de trafegar com seus veículos legalmente previstos pela legislação sem ter que comunicar a este ou aquele órgão público. Um grupo eclético de pessoas que apenas trafegava devagar. Gente.
Em que momento nós humanidade (gente) erramos ao conceder direitos, delegar prioridades, gerar medos, criar perfis? Direito de ir e vir se sobressai à vida. Prioridade sobre a vida. Medo sobre a vida. A lei do mais forte. Carro sobre bicicletas. Gente sobre gente.
O homem do carro não é culpado por temer quando se lê tanto sobre violência no cotidiano. As bicicletas não são culpadas quando se lê tanto sobre ecologia. A mídia não é culpada quando se lê tanto sobre crescimento econômico do país. As montadoras de carros não são culpadas. As autoridades não são culpadas. O sistema não é culpado. Gente, esses são os verdadeiros culpados. Gente e seus valores, gente e seus instintos básicos. Gente. Gente. Gente.
Eu quero um mundo melhor, mais tolerante, mais ecológico, mais paciente, mais respeitoso para os filhos que não quero ter.
Isso é um desabafo, não um texto.