Como pode alguém acreditar que o simples fato de "ser" – e trata-se de uma existência pífia – bastasse para arrebatar um coração de tamanha complexidade e intensas experiências sensoriais como o meu. No simples desejo de ilustrar minha justificativa conto-lhes uma história que de fictícia nada tem. Guardo, porém, a identidade do meu antagonista (apesar de alguns saberem bem de quem se trata) no intuito de preservar-lhe as relações amorosas atuais, alguém, aliás, que tenho em altíssima estima.
Caminhávamos por entre as bancas de uma longínqua Feira do Livro de Porto Alegre, numa modorrenta tarde de novembro quando éramos apenas flerte. Eis que me distraio, consciente perdido entre as páginas de alguma obra, ouço sua voz a chamar meu nome (sempre gostei de ouvir meu nome no timbre de meus amores). Volto-me a ele e lá está, segurando nas mãos rudes, dedos másculos, um volume, coletânea qualquer de Carlos Drummond de Andrade, página marcada num poema. Entrega-me o livro sem palavra sequer. Lá está impresso:
Reconhecimento do Amor
Amiga, como são desnorteantes os caminhos da amizade.
Apareceste para ser o ombro suave
onde se reclina a inquietação do forte
( ou que forte se pensava ingenuamente ).
Trazias nos olhos pensativos a bruma da renúncia:
não querias a vida plena,
tinhas o prévio desencanto das uniões para toda a vida,
não pedias nada,
não reclamavas teu quinhão de luz.
E deslizavas em ritmo gratuito de ciranda.
Descansei em ti meu feixe de desencontros
e de encontros funestos.
Queria talvez - sem o perceber, juro –
sadicamente massacrar-te
sob o ferro de culpas e vacilações e angústias que doíam
desde a hora do nascimento,
senão desde o instante da concepção em certo mês perdido na História,
ou mais longe, desde aquele momento intemporal
em que os seres são apenas hipóteses não formuladas
no caos universal.
Como nos enganamos fugindo ao amor!
Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentar
sua espada coruscante, seu formidável
poder de penetrar o sangue e nele imprimir
uma orquídea de fogo e lágrimas.
Entretanto, ele chegou de manso e me envolveu
Em doçura e celestes amavios.
Não queimava, não siderava; sorria,
Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso,
Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amor
Que trazia para mim e que teus dedos confirmavam
Ao se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro,
o Outro que eu me supunha, o Outro que te imaginava,
quando – por esperteza do amor – senti que éramos um só.
Amiga, amada, amada amiga, assim o amor
dissolve o mesquinho desejo de existir em face do mundo
Com olhar pervagante e larga ciência das coisas.
Já não defrontamos o mundo: nele nos diluímos,
e a pura essência em que nos transmutamos dispensa
alegorias, circunstâncias, referências temporais,
imaginações oníricas,
o vôo do Pássaro Azul, a aurora boreal,
as chaves de ouro dos sonetos e dos castelos medievos,
todas as imposturas da razão e da experiência,
para existir em si e por si,
à revelia de corpos amantes,
pois já nem somos nós, somos o número perfeito:
UM.
Levou tempo, eu sei, para que o EU renunciasse
à vacuidade de persistir, fixo e solar,
e se confessasse jubilosamente vencido,
até respirar o júbilo maior da integração.
Agora, amada minha para sempre,
nem olhar temos de ver nem ouvidos de captar
a melodia, a paisagem, a transparência da vida,
perdidos que estamos na concha ultramarina de amar
Como pode outro alguém acreditar que qualquer algo a menos que isso pudesse me fazer "apaixonar" outra vez?